Você já sentiu a vertigem de uma conexão digital intensa? Aquela conversa que flui madrugada adentro, as promessas implícitas de um futuro juntos, a sensação de ter encontrado “a pessoa certa” em questão de dias. E então, subitamente, o silêncio. As mensagens param de ser respondidas, a foto de perfil some ou o visualizado sem resposta se torna a única interação.
Bem-vindo à era do ghosting e dos amores descartáveis. Embora seja fácil culpar a tecnologia ou a “falta de educação” moderna, o buraco é mais embaixo. Para entender por que nos tornamos tão hábeis em descartar pessoas, precisamos olhar para o mundo em que vivemos através da sociologia de Zygmunt Bauman e para dentro de nós mesmos com as lentes da psicanálise.
O que descobrimos é que a frieza das telas muitas vezes serve de escudo para um medo profundo de intimidade e para um narcisismo que não tolera a imperfeição.
A Vida no Mundo Líquido: Pessoas como Produtos
Para começar, precisamos entender o palco onde esses relacionamentos acontecem. O sociólogo Zygmunt Bauman cunhou o termo “Modernidade Líquida” para descrever nosso tempo. Antigamente, as estruturas sociais (casamento, emprego, comunidade) eram sólidas e duradouras. Hoje, tudo é fluido. As formas se desfazem antes de se solidificarem.
Bauman, em sua obra “Amor Líquido”, nos alerta para uma mudança cruel: passamos a aplicar a lógica do consumo aos seres humanos. Nos aplicativos de namoro, deslizamos dedos como quem escolhe produtos em uma prateleira infinita. Buscamos o parceiro com o melhor “custo-benefício” emocional.
Nesse cenário, o compromisso soa como um perigo. Comprometer-se significa perder as outras mil possibilidades que o aplicativo oferece. O laço humano, que deveria trazer segurança, é visto como uma âncora pesada que impede o indivíduo de “fluir” livremente. Por isso, as relações tornam-se conexões: fáceis de fazer e, principalmente, fáceis de desfazer ao primeiro sinal de tédio ou dificuldade.
O Ghosting como Defesa contra a Intimidade
Se a sociedade nos empurra para a superficialidade, a psicanálise nos ajuda a entender por que aceitamos isso tão facilmente. O ghosting — o ato de sumir sem explicações — não é apenas uma falha de caráter; é um mecanismo de defesa.
A verdadeira intimidade é assustadora. Ela exige que baixemos a guarda e mostremos quem somos, com todas as nossas falhas, inseguranças e “bagagens”. Para muitos, essa vulnerabilidade é insuportável.
Aqui entra a psicanálise: o ghosting funciona como uma proteção contra o medo da perda e da rejeição. Ao desaparecer, o sujeito exerce um controle onipotente sobre a relação. Ele “mata” o vínculo antes que o vínculo possa machucá-lo. É um ataque preventivo. Quem vai embora primeiro garante que nunca será abandonado. É uma forma de manter a ilusão de que não precisamos do outro, de que somos autossuficientes e intocáveis.
O Narcisismo Frágil e o Ciclo da Idealização
Talvez o padrão mais doloroso e comum hoje seja o da intensidade rápida seguida pelo descarte súbito. Conhecemos alguém, em uma semana parece amor eterno, e na outra a pessoa esfria completamente. Por que isso acontece?
O psicanalista Otto Kernberg, uma das maiores autoridades no estudo do narcisismo, nos oferece uma chave de leitura importante. Esse comportamento é típico de um narcisismo frágil.
Muitas pessoas não buscam um parceiro real; buscam um espelho que reflita o quão maravilhosas elas mesmas são. O ciclo funciona assim:
- A Idealização (O Pedestal): No início, o outro é visto como perfeito. Não é amor pelo que a pessoa é, mas pelo que ela representa. O narcisista se sente grandioso por ter conquistado alguém tão “incrível”. É a fase da paixão avassaladora e rápida.
- A Realidade: Com o tempo, a realidade inevitavelmente aparece. O parceiro mostra que tem defeitos, fica doente, tem mau humor ou discorda de algo. A imagem perfeita trinca.
- A Desvalorização (O Descarte): Para quem tem um narcisismo frágil, a imperfeição do outro é sentida como uma ofensa pessoal. Se o outro não é perfeito, ele não serve mais para sustentar o ego do narcisista. Ocorre então a desvalorização total. A pessoa que era “tudo” passa a ser “nada”.
Kernberg explica que essa incapacidade de integrar o lado bom e o lado ruim de uma pessoa (o que chamamos de cisão) impede a construção de laços duradouros. O ghosting, nesse caso, é o descarte do “objeto” que defeituoso.
Conclusão: A Coragem de Permanecer
A tecnologia facilitou o descarte, mas a fragilidade é humana. Viver amores líquidos é uma forma de evitar a dor, mas o preço que se paga é a solidão acompanhada.
Superar essa dinâmica exige maturidade emocional para entender que o outro não é um produto feito sob medida para nossas necessidades. O amor real, sólido, começa justamente onde a idealização termina. Ele exige suportar o tédio, tolerar as falhas alheias e, principalmente, ter a coragem de permanecer e construir, mesmo quando a “prateleira” digital oferece a ilusão de algo melhor logo ali.
Em tempos líquidos, a maior rebeldia talvez seja a insistência em construir laços sólidos.
Por Sabrina Rezende.
